quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Quando olhei nos olhos do horror

Até esta parte do caminho, não havia conseguido encarar tal criatura. Até aqui, qualquer visão dos contornos de sua sombra me faziam desviar o olhar, o pensamento, trilhar outros rumos.
Mas eis que fui adentrando suas sombras até chegar em sua imagem. Lá dentro, entre a sombra e seu corpo, um vento gelado pairou em minhas entranhas e foi sugando minhas energias até quase me derrubar.
Não podia desfalecer. Não desta vez. Não mais.
Ainda havia um pouco de ar e sangue quente que passavam por mim. Estavam lá, em meu abdômen, pulsando e resistindo à tontura e vertigem que me tomava a cada vez que olhava nos olhos dela.
Eu seguia viva, ainda que fraca.
Uma chama uterina me manteve sentada, encarando a criatura. O calor crescia, subia pela barriga, mãos, garganta, rosto. Não falei. A fúria de meu silêncio queimava todas as lanças que ela insistia em atirar em mim.
Deixar que aquelas lanças atravessassem meu coração seria como tirar a minha própria vida. Entregar-me à morte, à dor insuportável que vive na criatura. Entregar-me ao medo criador daquele ser.
Um ser covarde, cujo desejo maior é não ter que olhar para a sua dor. É ver seus maiores fantasmas me tomarem, para acreditar que são apenas meus. É aniquilar-me e rir sarcasticamente da minha morte. É vangloriar-se de seu poder sobre mim. É comemorar euforicamente a falsa conquista e controle do mundo. É não ouvir a ninguém, pois qualquer dúvida, qualquer outro, seriam responsáveis por ecos ensurdecedores, enlouquecedores.
Aquele ser, patriota de um país amorfo, sem nome, hasteia a bandeira da morte em plena vida.

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Tão linda essa minha neta

“Vamos sair em cinco minutos, estão todas prontas?”
Meu pai se aprontara antes de nós quatro (eu, minha mãe e minhas duas irmãs).
Olhei-me no espelho. Calçava um all star branco, que eu vivia tentando sujar o máximo possível para que ficasse igual ao da menina do “Clube das Babás”, meu filme preferido na época.
Meu all star branco quase não aparecia por de baixo do macacão jeans. Eu gostava assim, de usar o macacão todo largo, arrastando no chão.
A camiseta por baixo do macacão também era larga. Não queria nada me apertando. A única coisa que apertava um pouco era o boné na cabeça. Usava ele virado pra trás.
All star, macacão e boné. Pronto, agora eu estava pronta para o almoço na casa da minha avó.
“O que é isso, Priscila? Uma menina como vc usando essa roupa? E esse boné?”
Após o comentário, um abraço seguido de tapinhas nas costas.
A próxima a ser recebida era minha irmã do meio. Dois anos mais nova que eu, ela usava uma mini-blusa rosa, dessas que deixam parte da barriga aparecendo. A calça legging era apertada e também colorida, antecipando a sandália com altas plataformas. Um brinco grande chacoalhava enquanto minha avó a abraçava sorridente.
“Tão linda essa minha neta!”

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Quem habita a casa do silêncio?



Há muitos e muitos anos, o Medo habitava a casa do Silêncio. Ninguém sabia dizer em que momento o Medo entrou naquela casa, nem se lá morava alguém antes dele.
Na casa não havia janela, e as paredes eram as mais duras e grossas de todo o mundo. Nunca ninguém havia chegava perto da casa. Era verdade absoluta que qualquer um que tentasse se aproximar seria recebido com as flechas e os espinhos espalhadas em frente à construção. Por nunca ter saído de casa, o rosto do Medo não era conhecido por ninguém. Todos imaginavam que ele seria um monstro enorme, horrível e assustador.
O Desejo, que não morava naquela cidade, um dia chegou de uma longa viagem e parou para repousar por uns dias. Repousar era algo raro para o Desejo, que costumava andar, andar e nunca parar. Enquanto estava por lá, conversou com todos os habitantes daquele lugar.
Fazer perguntas era uma das coisas de que o Desejo mais gostava em seu dia a dia. Cada pergunta o direcionava para lugares e pessoas diferentes, por isso ele quase nunca parava quieto. Nessas longas conversas, perguntou aos moradores da cidade: “eu gostaria de dormir na casa do Silêncio, posso entrar lá?”.
Os moradores estranharam a pergunta. Nunca ninguém tinha se perguntado se poderia entrar na casa do Silêncio. Era a morada do Medo e ponto final.
Mesmo sem uma resposta, o Desejo foi até a casa.
Logo que abriu a porta, o calor que envolvia seu corpo agitado recebeu o frio que vinha lá de dentro.
Ao ouvir que alguém entrava em sua casa, o Medo assustou-se. Precisava ver quem era. Mas percebeu que estava todo congelado. Não havia reparado a camada de gelo que o cobrira durante todos esses anos.
Antes de entrar na casa, o Desejo percebeu que precisava parar para entender que lugar era aquele. Precisava de cuidado e atenção para desviar das flechas e dos espinhos que cercavam a casa.
Entrou na casa do Silêncio.
O calor que vinha do Desejo derretia a torre de gelo que impedia o Medo de se mexer. O frio que vinha do Medo pedia atenção e calma ao Desejo.
Encontraram-se. Olharam-se.
Quem é você?
Silenciaram, na casa do Silêncio.