Aquela última sexta-feira de
janeiro já contava suas últimas horas quando eu cheguei à minha casa. Foi uma
das únicas vezes em que abri a porta sem que sorrisos e abraços acolhessem o
meu dia cansado. Minha família tinha ido viajar e eu passaria os longos minutos
de sábado e domingo sem nenhuma voz além daquela vinda dos meus pensamentos. Em
meus 23 anos, não me lembro de ter ficado completamente
sozinha por mais de um dia. “Vai ser tranquilo”, eu dizia a mim mesma quando a
ponta do iceberg de medo me cutucava, “afinal, já tenho tudo planejado para
estes dias”. Desde pequena, agendas a planilhas mentais sempre estiveram ao meu
lado, dando empurrões para longe em qualquer sensação que me desviasse dos
caminhos certos.
O tapete macio em frente à televisão chamou-me para me
deitar alguns instantes sobre ele. Antes que eu me entregasse ao pretenso
relaxamento dos meus músculos-sempre-tensos, apertei o play em Beethoven, com a
intenção de que as curvas de suas sinfonias acalmassem meus sentidos. Com
braços ao lado do corpo e pernas abertas, fui ouvindo nota por nota, tentando
me ater a cada uma delas. Como no extremo som do perigo, percebi meu coração
amedrontado e acelerado nos tons mais graves e transfigurei-me para uma
não-forma, perdida em não-mundos. Quis parar a música, porque o frio que tomava
a sala pedia um retorno ao conforto de minha casa.
Mas não podia parar, não queria fugir de mim. Sabia que
de alguma forma aquele amontoado de cores que se mexiam rapidamente devia
existir por mais tempo. Quando eu estava a ponto de gritar, violinos e pianos
entraram na sala como um pedido de calma, aquecendo o espaço entre o meu corpo
e o teto. Foi aí que dei um sorriso – daqueles que são capazes de abraçar –
para dentro de mim, o que se revelou uma novidade tremenda. O dia a dia dos
meus sorrisos muitas vezes é fabricado para fingir agrado a um outro rosto
fingidor.
Durante toda a sinfonia, eu e o tapete bege da sala
enfrentamos ainda alguns medos de altura e a certeza do solo. A música acabou e
o que vi foi o branco do teto e, como se eu transferisse meu olhar de ângulo,
pude observar também o meu corpo, lá de cima. Desconheci-me. Apavorei-me. Quem
seria aquela mulher-criança deitada no chão de um lugar desconhecido? Estranhei
tudo a meu redor; o sofá, as cadeiras, as flores, o ar. De onde vieram estes
cabelos e estas pernas? “Devo estar ficando louca; meu Deus, ajude-me a não
enlouquecer, eu não posso enlouquecer”, repeti algumas vezes naquela noite.
Levantei-me e afastei-me de cada passo que eu dava. Eu
observava aquele ser humano de longe. Não estava conduzindo meus gestos. Comer
um pão e tomar banho foram feitos de maneira automática; eu não estava lá.
Estava distante, descolada de meu corpo, de minha mente e de palavras cujos
sentidos eu havia cristalizado e cujo controle eu (ou aquele corpo estranho)
acreditava ter. Agora aquele ser era um nada, um vazio. O mar do
desconhecimento havia, enfim, derrubado a porta laranja de minha casa.