sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Morte precoce

O ritual diário de deslizar os dedos pela tela de meu celular, a fim de me inserir nas atualidades postadas pelos meus conhecidos nas redes sociais, tem se tornado entediante – se é que sempre não o foi. Principalmente nestes meses que antecedem as eleições, tenho sentido que a complexidade inerente ao diálogo tem sido pressionada ao limite, até se tornar um estreito post de Facebook.

“A Marina é evangélica e eu não voto em evangélicos”; “A Dilma é do PT e eu não voto em partido de corruptos”; “Aécio Never”. Após cada debate televisivo entre os presidenciáveis, a enxurrada de opiniões e impressões – forte, assustadora, porém passageira – muitas vezes vem para eliminar qualquer início de pensamento.

Urgentes em informar seus curtidores sobre o destino de seu voto à Presidência da República, muitos de meus amigos facebookianos acabam entrando em uma guerra de singularidades. Expressam-se sem considerar a existência do Outro – tanto o interlocutor quando o objeto da fala -, descarregam frases engessantes e engessadas, abortando o pensamento antes que este pudesse se transformar em feto.

Há quem diga que vivemos, hoje, uma realidade que permite o exercício de nossas liberdades, principalmente no que diz respeito às possibilidades de comunicação em rede. Sim, as potencialidades da internet são inúmeras: organizamos e conectamos movimentos sociais; acessamos e produzimos conteúdos que no passado poderiam ter sido censurados; criamos novos espaços de convivência.

Ao mesmo tempo, muitas dessas flechas que - sob a forma de incógnitas - apontam para novos olhares são derrubadas pela pressa de transformar contos em fábulas. Acabamos por informar muito e comunicar pouco, por concluir a síntese sem antes exercer o duro diálogo com a antítese. Nas redes sociais e fora delas, falta-nos tempo silencioso para compreender a pluraridade, que, como afirmou Hannah Arendt, é condição humana.

terça-feira, 18 de março de 2014

Autoengano

Aquela última sexta-feira de janeiro já contava suas últimas horas quando eu cheguei à minha casa. Foi uma das únicas vezes em que abri a porta sem que sorrisos e abraços acolhessem o meu dia cansado. Minha família tinha ido viajar e eu passaria os longos minutos de sábado e domingo sem nenhuma voz além daquela vinda dos meus pensamentos. Em meus 23 anos, não me lembro de ter ficado completamente sozinha por mais de um dia. “Vai ser tranquilo”, eu dizia a mim mesma quando a ponta do iceberg de medo me cutucava, “afinal, já tenho tudo planejado para estes dias”. Desde pequena, agendas a planilhas mentais sempre estiveram ao meu lado, dando empurrões para longe em qualquer sensação que me desviasse dos caminhos certos.
            O tapete macio em frente à televisão chamou-me para me deitar alguns instantes sobre ele. Antes que eu me entregasse ao pretenso relaxamento dos meus músculos-sempre-tensos, apertei o play em Beethoven, com a intenção de que as curvas de suas sinfonias acalmassem meus sentidos. Com braços ao lado do corpo e pernas abertas, fui ouvindo nota por nota, tentando me ater a cada uma delas. Como no extremo som do perigo, percebi meu coração amedrontado e acelerado nos tons mais graves e transfigurei-me para uma não-forma, perdida em não-mundos. Quis parar a música, porque o frio que tomava a sala pedia um retorno ao conforto de minha casa.
            Mas não podia parar, não queria fugir de mim. Sabia que de alguma forma aquele amontoado de cores que se mexiam rapidamente devia existir por mais tempo. Quando eu estava a ponto de gritar, violinos e pianos entraram na sala como um pedido de calma, aquecendo o espaço entre o meu corpo e o teto. Foi aí que dei um sorriso – daqueles que são capazes de abraçar – para dentro de mim, o que se revelou uma novidade tremenda. O dia a dia dos meus sorrisos muitas vezes é fabricado para fingir agrado a um outro rosto fingidor.
            Durante toda a sinfonia, eu e o tapete bege da sala enfrentamos ainda alguns medos de altura e a certeza do solo. A música acabou e o que vi foi o branco do teto e, como se eu transferisse meu olhar de ângulo, pude observar também o meu corpo, lá de cima. Desconheci-me. Apavorei-me. Quem seria aquela mulher-criança deitada no chão de um lugar desconhecido? Estranhei tudo a meu redor; o sofá, as cadeiras, as flores, o ar. De onde vieram estes cabelos e estas pernas? “Devo estar ficando louca; meu Deus, ajude-me a não enlouquecer, eu não posso enlouquecer”, repeti algumas vezes naquela noite.
            Levantei-me e afastei-me de cada passo que eu dava. Eu observava aquele ser humano de longe. Não estava conduzindo meus gestos. Comer um pão e tomar banho foram feitos de maneira automática; eu não estava lá. Estava distante, descolada de meu corpo, de minha mente e de palavras cujos sentidos eu havia cristalizado e cujo controle eu (ou aquele corpo estranho) acreditava ter. Agora aquele ser era um nada, um vazio. O mar do desconhecimento havia, enfim, derrubado a porta laranja de minha casa.