sexta-feira, 14 de abril de 2017

Voz silenciosa


Começar a conhecer um lugar novo é como começar a conhecer alguém. Há a primeira impressão, as memórias a que aquele lugar te remete, as relações que se estabelecem nele e, principalmente, que sentimentos aquele canto do mundo ativa em vc. Tenho gostado particularmente dos lugares-pessoas que abraçam, que acompanham os passos, ora lentos ora rápidos, daquela relação que começa a se formar. Entrar no Saco do Mamanguá foi como entrar em mim, me perceber pequena na imensidão do todo, e enorme no silêncio de seus dias. Nunca havia me sentido tão bem em um lugar. Foi lá que voltei, com toda a gentileza do mundo, aos meus 4 anos de idade, quando eu e minha família vimos a Andreia, tão pequenina, partir rumo ao desconhecido. Foi lá no Mamanguá que a Andreia, cujas palavras nunca foram pronunciadas, se tornou de repente tão imensa. Foi lá que eu e ela, em nossas gigantes pequenezas, nos transformamos na voz de Deus. Nunca antes ouvida por mim, sua voz era linda, calma como as águas que via à minha frente. Uma voz que conversava comigo sem dizer uma só palavra, uma voz que me envolvia no abraço mais acolhedor da vida. Era o abraço da mata, do mar. Era o abraço de uma criança. Era o meu abraço silencioso, de mim para mim, do mundo em mim, e de mim para o mundo.
Comecei a conhecer o Mamanguá, comecei a conhecer Deus.

quarta-feira, 12 de abril de 2017

Eu e Cher

Há 12 anos, eu estava na oitava série. Se fosse horário de escola, provavelmente eu estaria contando os minutos pra chegar em casa e assistir mais uma vez o DVD da Cher, "Living Proof: The Farewell Tour". Isso mesmo, eu tinha 14 anos e era vidrada em uma cantora que poucos da minha idade conheciam e que já estava se despedindo dos palcos. O ano de 2005 seria o último da turnê de despedida. Saber que eu havia acabado de conhecer, e me apaixonar, por alguém que já estava indo embora era algo que me indignava e me fascinava ao mesmo tempo. Me lembro que naquela época nunca quis tanto ser uns 30 anos mais velha pra poder ter acompanhado sua carreira e seus shows. Como a conheci? O que havia nela que me encantava daquele jeito e me fazia passar horas em frente a uma tela? Até hoje não sei dizer e talvez nunca saberei ao certo, porque cada vez que a ouço, seu som me toca em um lugar diferente. O que sei é que a música da Cher, seu sorriso e sua força me deixam feliz e me fazem esquecer do resto das coisas que não me deixam. Me deixam mais forte até hoje, assim como me deixavam naquela transição pro Ensino Médio e em meio a tudo e tanto que devia se passar dentro de mim e que eu não sabia como traduzir aos 14 anos. Mas o que quero contar mesmo é sobre um dia em que estava na minha casa, um apartamento substituto na verdade, já que a nossa casa havia sido inundada pela chuva de uma caixa d'água estourada. Eu estava lá, em um lugar que não era a minha casa, um quarto que não era meu quarto, pesquisando em quais lugares do mundo a Cher estaria nas próximas semanas. Foi aí que meu pai entrou no quarto dizendo que precisava me contar uma coisa. "Filha, veja aí na agenda de shows quando é o show dela em Montreal, no Canadá". Seria em breve. "Sabe esse show aqui? Vc vai assistir ao vivo!". Meu pai teria um congresso de medicina e eu e minha mãe iríamos junto com ele passar cinco dias na cidade canadense. Não me lembro da minha reação na hora, sei que agora, só de pensar nisso, meu olho enche de lágrimas e sinto a maior felicidade que pode ocupar e transbordar o corpo de alguém. Fomos. Enquanto vivia aquele sonho, naquela cidade tão linda, lembro de ter sentido medo de ele não ser real. Para registrar o momento, levamos para o show uma filmadora que logo foi confiscada por um segurança. "Não se pode gravar a apresentação". Dependia só de mim, da minha memória, reviver a presença daquela mulher. A minha presença na presença dela. Tive medo de esquecer, de ela sumir, morrer, de aquele momento desaparecer pra sempre de mim. Mas "Farewell tour", a turnê de despedida, nunca foi uma despedida. Porque quando há memória, a despedida é temporária, e os reencontros acontecem quando a gente menos espera. Como nesta manhã de quarta-feira, 12 anos depois do dia que fora um dos mais felizes da minha vida.

Aqui vai uma das músicas mais legais dela, Strong Enough :) 


domingo, 2 de abril de 2017

Árvore tombada

Há mais ou menos trinta anos, vento e chuva forte a derrubaram. Doeu fundo. Havia perdido seu lugar na mata. Passou anos deitada, sem força, sentindo a pedra enorme que era seu novo chão. Em silêncio, sem que ninguém soubesse, percebeu que ainda havia raiz. E não só. Havia raiz e havia água e havia mangue. Havia alimento para seguir vivendo. Os galhos, pequeninos, olharam o sol e decidiram seguir firmes em sua direção. Direções outras, tão diferentes daquela que estava prevista dentro do espaço em que era rainha. Para cima, para os lados. Não importava mais como nem para onde iria crescer, importava agora que seguisse se espalhando pelo novo e sustentando sua raiz. No movimento sutil de seu tempo.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Confia em mim

"Confia em mim"
Frase rara, espécie em extinção. Expressão que quando dita com presença, com verdade, é a pontinha da flor que pode brotar do asfalto. É a linha que separa o joio do trigo.
Cultivemos, para que um dia possamos também dizer, com a mesma presença e verdade:
"Eu confio em você"

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Palavras à esquerda

Um dia olhamos para a autoridade e a chamamos de autoritarismo
Vimos a liderança e dissemos que ela era intransigência
Dedicação e seriedade transformaram-se em meritocracia
Colocamos as roupas, maquiagens e sapatos altos no armário do padrão de beleza
Confundimos os posicionamentos firmes com ausência de diálogo
Chamamos os silêncios de covardia
Olhamos nossos desejos nos olhos e os nomeamos egoísmo
Sem autoridade, sem liderança, sem vestimentas, sem posicionamentos, sem silêncios e sem desejos, perdemos nossos nomes, nossos corpos. Se é que algum dia os tivemos.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Desejo para 2017

O que desejo para o mundo em 2017?
Um profundo aprimoramento de nossa capacidade de leitura. Leitura de textos, de falas, de silêncios, de nosso mundo interno, de nossas relações.
Que possamos resgatar e valorizar nossas inteligências.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Destruidores de seres e sonhos

Destruidores de seres e sonhos
Não estão lá longe, em outro mundo. Estão bem aqui, em nosso cotidiano. Falam alto e sem parar. São ruins de ouvido. Escuta, então, nunca aprenderam. Nunca precisaram ouvir, já que seus monólogos bastavam para a própria sobrevivência.
São estraga-prazeres por definição. Ao sinal de qualquer brilho nos olhos alheios, eles são os primeiros a tirar do bolso o riso sarcástico ou a fala grosseira. Não suportam ver nenhuma conquista. Passam o dia reclamando. Reclamando, não denunciando. Nunca resolvem problemas. Às vezes se incomodam e se indignam com as mesmas coisas que vc. Às vezes são homens, às vezes são mulheres como vc. E por serem parecidos, vc acha que está tudo bem.
Muitas vezes vc pode até se apaixonar por um deles. Paixão ilusória. Dessas que servem pra nos aproximar de algo que precisamos curar. Eles vão duvidar de vc, de seus ideais, de seus desejos. Vão pisar em seus medos, dizendo que vc é sensível demais. Como disse, são ruins de ouvido. Vão dizer que a música de que vc gosta é ruim, o filme é brega, o passeio é modinha. Vão rir de vc todos os dias. Vão dizer que é brincadeira. Vão te chamar de exagerada, xiita. Vão gritar "não levante a voz pra mim".
Vão tentar te convencer de que vc é o que na verdade eles são. Não são bons em admitir falhas. Erros, nunca. Às vezes vc vai acreditar no que dizem. Vai duvidar das suas palavras, de seus gostos, do que te faz bem. Com eles, vc pode até beber mais do que gostaria naquela noite, fumar o que não queria, dizer palavras que não são suas. Vc pode até se tornar, provisoriamente, o que eles querem que vc se torne. Um ser fraco.
Vc vai ajudá-los quando precisam. Vai abraçá-los. Vai querer que sejam amigos. Mas aquele abraço não volta, aquele conselho não vem quando vc precisa, aquela ajuda não acontece.
Destruidores de seres e sonhos têm sempre uma resposta pronta. Às suas críticas, às suas falas. Tentam fazer com que vc se sinta culpada sempre. Te farão duvidar de seus valores. São sugadores de memória. Te farão duvidar da sua história e de suas intenções. Contarão aos outros mentiras sobre vc. Nunca te farão perguntas querendo saber a sua versão dos fatos. "Não importa o que vc tem a dizer", eles afirmam. Esgotam suas energias. Não sabem dialogar porque não veem a existência do outro.
Destruidores de seres e sonhos autorizam a tortura de estudantes nas escolas ocupadas. Congelam investimentos públicos em saúde e educação. Matam jovens negros todos os dias. Olham com nojo e querem excluir a vida de tudo que não é espelho. São golpistas. São machistas, racistas, homofóbicos. E são também muita gente que se diz contra tudo isso. E é aí que eles quase te enganam.
Não estão longe, em outro mundo. Estão bem aqui, em nosso cotidiano. Podem estar na família, no trabalho, entre os amigos. No ponto de ônibus, nas redes, nas ruas. Estão espalhados, tentando matar nossas-suas vidas.
Resistimos. Vivemos e sobrevivemos. Existimos. Mal sabem eles que construímos seres e sonhos muito mais fortes bem em cima dos escombros.