sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Palavras à esquerda

Um dia olhamos para a autoridade e a chamamos de autoritarismo
Vimos a liderança e dissemos que ela era intransigência
Dedicação e seriedade transformaram-se em meritocracia
Colocamos as roupas, maquiagens e sapatos altos no armário do padrão de beleza
Confundimos os posicionamentos firmes com ausência de diálogo
Chamamos os silêncios de covardia
Olhamos nossos desejos nos olhos e os nomeamos egoísmo
Sem autoridade, sem liderança, sem vestimentas, sem posicionamentos, sem silêncios e sem desejos, perdemos nossos nomes, nossos corpos. Se é que algum dia os tivemos.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Desejo para 2017

O que desejo para o mundo em 2017?
Um profundo aprimoramento de nossa capacidade de leitura. Leitura de textos, de falas, de silêncios, de nosso mundo interno, de nossas relações.
Que possamos resgatar e valorizar nossas inteligências.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Destruidores de seres e sonhos

Destruidores de seres e sonhos
Não estão lá longe, em outro mundo. Estão bem aqui, em nosso cotidiano. Falam alto e sem parar. São ruins de ouvido. Escuta, então, nunca aprenderam. Nunca precisaram ouvir, já que seus monólogos bastavam para a própria sobrevivência.
São estraga-prazeres por definição. Ao sinal de qualquer brilho nos olhos alheios, eles são os primeiros a tirar do bolso o riso sarcástico ou a fala grosseira. Não suportam ver nenhuma conquista. Passam o dia reclamando. Reclamando, não denunciando. Nunca resolvem problemas. Às vezes se incomodam e se indignam com as mesmas coisas que vc. Às vezes são homens, às vezes são mulheres como vc. E por serem parecidos, vc acha que está tudo bem.
Muitas vezes vc pode até se apaixonar por um deles. Paixão ilusória. Dessas que servem pra nos aproximar de algo que precisamos curar. Eles vão duvidar de vc, de seus ideais, de seus desejos. Vão pisar em seus medos, dizendo que vc é sensível demais. Como disse, são ruins de ouvido. Vão dizer que a música de que vc gosta é ruim, o filme é brega, o passeio é modinha. Vão rir de vc todos os dias. Vão dizer que é brincadeira. Vão te chamar de exagerada, xiita. Vão gritar "não levante a voz pra mim".
Vão tentar te convencer de que vc é o que na verdade eles são. Não são bons em admitir falhas. Erros, nunca. Às vezes vc vai acreditar no que dizem. Vai duvidar das suas palavras, de seus gostos, do que te faz bem. Com eles, vc pode até beber mais do que gostaria naquela noite, fumar o que não queria, dizer palavras que não são suas. Vc pode até se tornar, provisoriamente, o que eles querem que vc se torne. Um ser fraco.
Vc vai ajudá-los quando precisam. Vai abraçá-los. Vai querer que sejam amigos. Mas aquele abraço não volta, aquele conselho não vem quando vc precisa, aquela ajuda não acontece.
Destruidores de seres e sonhos têm sempre uma resposta pronta. Às suas críticas, às suas falas. Tentam fazer com que vc se sinta culpada sempre. Te farão duvidar de seus valores. São sugadores de memória. Te farão duvidar da sua história e de suas intenções. Contarão aos outros mentiras sobre vc. Nunca te farão perguntas querendo saber a sua versão dos fatos. "Não importa o que vc tem a dizer", eles afirmam. Esgotam suas energias. Não sabem dialogar porque não veem a existência do outro.
Destruidores de seres e sonhos autorizam a tortura de estudantes nas escolas ocupadas. Congelam investimentos públicos em saúde e educação. Matam jovens negros todos os dias. Olham com nojo e querem excluir a vida de tudo que não é espelho. São golpistas. São machistas, racistas, homofóbicos. E são também muita gente que se diz contra tudo isso. E é aí que eles quase te enganam.
Não estão longe, em outro mundo. Estão bem aqui, em nosso cotidiano. Podem estar na família, no trabalho, entre os amigos. No ponto de ônibus, nas redes, nas ruas. Estão espalhados, tentando matar nossas-suas vidas.
Resistimos. Vivemos e sobrevivemos. Existimos. Mal sabem eles que construímos seres e sonhos muito mais fortes bem em cima dos escombros.

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Quando olhei nos olhos do horror

Até esta parte do caminho, não havia conseguido encarar tal criatura. Até aqui, qualquer visão dos contornos de sua sombra me faziam desviar o olhar, o pensamento, trilhar outros rumos.
Mas eis que fui adentrando suas sombras até chegar em sua imagem. Lá dentro, entre a sombra e seu corpo, um vento gelado pairou em minhas entranhas e foi sugando minhas energias até quase me derrubar.
Não podia desfalecer. Não desta vez. Não mais.
Ainda havia um pouco de ar e sangue quente que passavam por mim. Estavam lá, em meu abdômen, pulsando e resistindo à tontura e vertigem que me tomava a cada vez que olhava nos olhos dela.
Eu seguia viva, ainda que fraca.
Uma chama uterina me manteve sentada, encarando a criatura. O calor crescia, subia pela barriga, mãos, garganta, rosto. Não falei. A fúria de meu silêncio queimava todas as lanças que ela insistia em atirar em mim.
Deixar que aquelas lanças atravessassem meu coração seria como tirar a minha própria vida. Entregar-me à morte, à dor insuportável que vive na criatura. Entregar-me ao medo criador daquele ser.
Um ser covarde, cujo desejo maior é não ter que olhar para a sua dor. É ver seus maiores fantasmas me tomarem, para acreditar que são apenas meus. É aniquilar-me e rir sarcasticamente da minha morte. É vangloriar-se de seu poder sobre mim. É comemorar euforicamente a falsa conquista e controle do mundo. É não ouvir a ninguém, pois qualquer dúvida, qualquer outro, seriam responsáveis por ecos ensurdecedores, enlouquecedores.
Aquele ser, patriota de um país amorfo, sem nome, hasteia a bandeira da morte em plena vida.

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Tão linda essa minha neta

“Vamos sair em cinco minutos, estão todas prontas?”
Meu pai se aprontara antes de nós quatro (eu, minha mãe e minhas duas irmãs).
Olhei-me no espelho. Calçava um all star branco, que eu vivia tentando sujar o máximo possível para que ficasse igual ao da menina do “Clube das Babás”, meu filme preferido na época.
Meu all star branco quase não aparecia por de baixo do macacão jeans. Eu gostava assim, de usar o macacão todo largo, arrastando no chão.
A camiseta por baixo do macacão também era larga. Não queria nada me apertando. A única coisa que apertava um pouco era o boné na cabeça. Usava ele virado pra trás.
All star, macacão e boné. Pronto, agora eu estava pronta para o almoço na casa da minha avó.
“O que é isso, Priscila? Uma menina como vc usando essa roupa? E esse boné?”
Após o comentário, um abraço seguido de tapinhas nas costas.
A próxima a ser recebida era minha irmã do meio. Dois anos mais nova que eu, ela usava uma mini-blusa rosa, dessas que deixam parte da barriga aparecendo. A calça legging era apertada e também colorida, antecipando a sandália com altas plataformas. Um brinco grande chacoalhava enquanto minha avó a abraçava sorridente.
“Tão linda essa minha neta!”

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Quem habita a casa do silêncio?



Há muitos e muitos anos, o Medo habitava a casa do Silêncio. Ninguém sabia dizer em que momento o Medo entrou naquela casa, nem se lá morava alguém antes dele.
Na casa não havia janela, e as paredes eram as mais duras e grossas de todo o mundo. Nunca ninguém havia chegava perto da casa. Era verdade absoluta que qualquer um que tentasse se aproximar seria recebido com as flechas e os espinhos espalhadas em frente à construção. Por nunca ter saído de casa, o rosto do Medo não era conhecido por ninguém. Todos imaginavam que ele seria um monstro enorme, horrível e assustador.
O Desejo, que não morava naquela cidade, um dia chegou de uma longa viagem e parou para repousar por uns dias. Repousar era algo raro para o Desejo, que costumava andar, andar e nunca parar. Enquanto estava por lá, conversou com todos os habitantes daquele lugar.
Fazer perguntas era uma das coisas de que o Desejo mais gostava em seu dia a dia. Cada pergunta o direcionava para lugares e pessoas diferentes, por isso ele quase nunca parava quieto. Nessas longas conversas, perguntou aos moradores da cidade: “eu gostaria de dormir na casa do Silêncio, posso entrar lá?”.
Os moradores estranharam a pergunta. Nunca ninguém tinha se perguntado se poderia entrar na casa do Silêncio. Era a morada do Medo e ponto final.
Mesmo sem uma resposta, o Desejo foi até a casa.
Logo que abriu a porta, o calor que envolvia seu corpo agitado recebeu o frio que vinha lá de dentro.
Ao ouvir que alguém entrava em sua casa, o Medo assustou-se. Precisava ver quem era. Mas percebeu que estava todo congelado. Não havia reparado a camada de gelo que o cobrira durante todos esses anos.
Antes de entrar na casa, o Desejo percebeu que precisava parar para entender que lugar era aquele. Precisava de cuidado e atenção para desviar das flechas e dos espinhos que cercavam a casa.
Entrou na casa do Silêncio.
O calor que vinha do Desejo derretia a torre de gelo que impedia o Medo de se mexer. O frio que vinha do Medo pedia atenção e calma ao Desejo.
Encontraram-se. Olharam-se.
Quem é você?
Silenciaram, na casa do Silêncio.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Por que votei em Haddad?

Depois de muitas conversas, ponderações, angústias e esclarecimentos, tomei minha decisão. Votarei em Fernando Haddad no domingo. Sigo com dúvidas, questões e críticas. Pessoas que admiro e em quem confio muito me apontaram problemas e erros indiscutíveis na gestão de Haddad e que precisam ser cuidados daqui pra frente. O tratamento dado à população em situação de rua é um deles. A GCM é outro. As condições de atendimento nos postos de saúde nas periferias também. O vice Chalita desperta minha desconfiança e trauma pós-golpe. Além de outros pontos que com certeza surgirão a cada nova conversa. Mas junto a todas essas questões, sem eliminar o lugar e a importância de nenhuma delas, não posso e não vou excluir da minha escolha, e dos próximos passos que acredito para esta cidade, todas as experiências positivas que eu vivenciei ou acompanhei de alguma forma nos últimos tempos. Outras pessoas em quem também confio muito me apresentaram a mudanças e projetos importantes que foram feitos nas periferias na gestão Haddad, sobretudo no que se refere à educação (os comentários estão num post aqui embaixo). Além disso, tenho percebido, cada vez mais, que política é também experiência. E qualquer decisão tomada sem (também) me levar em conta seria uma decisão deslocada, equivocada, autoritária até. Então, falando do que vivi: ocupar o espaço público, em ciclovias, carnavais e na Paulista Aberta me fez começar a olhar para o lugar onde eu sempre morei com olhos novos. Toda vez que caminho, danço ou pedalo por São Paulo, volto com mais questões e ideias. Com alegrias, entusiasmos e tbm incômodos, revoltas. Volto com olhares que se ampliam. Com um corpo que se percebe e percebe os outros. Volto me conhecendo melhor, por conhecer mais o espaço onde habito e as pessoas que compartilham esse espaço comigo. Por começar a visualizar e querer entender as contradições de uma cidade. Reconheço que essa é uma percepção ainda limitada, sim. Mas é também uma voz nova que conversa comigo e que me diz que ainda há muito pra conhecer e muito pra fazer. Por isso sigo com esperança de continuidade de ações que sejam transformadoras e positivas para cada vez mais pessoas. Não só pra mim, não só para os jovens de classe média alta, que fazemos parte do grupo que mais aprovou a gestão Haddad. Desejo, profundamente, que o que foi feito de bom seja ampliado e aprimorado por toda a cidade de São Paulo. Que a gente saiba continuar fazendo críticas, mas também saiba manter e sustentar as conquistas. Que a gente não permita que pessoas e projetos conservadores, discriminatórios e totalitários se apropriem dos nossos espaços internos e externos. Que injustiças não sejam silenciadas, toleradas ou esquecidas. Que, juntos, sejamos mais fortes que qualquer tipo de violência, neste e em qualquer outro tempo.

sábado, 24 de setembro de 2016

Texto, faz tempo que a gente não conversa


Querido texto,

Faz um tempão que a gente não conversa, né?
Vim aqui pra te dizer que vc faz uma falta danada na minha vida. Até que vc tenta aparecer de vez em quando, naquelas anotações soltas e meio desconexas nos cadernos que eu sempre levo na mochila. Mas tem sido raras as vezes em que eu paro pra organizar essas palavras, dar uma forma a vc e te colocar para os outros te lerem.
Vc apareceu na minha vida, de fato, em 2013. Lembra disso? Me ajudou a segurar uma barra bem pesada. Quando eu pensei que fosse enlouquecer de verdade, vc vinha e me chamava pra bater um papo. Aí a gente organizava juntos e em palavras o que era muito difícil de ver e sentir.
Eram textos muito loucos que nasciam desses nossos encontros. As palavras brotavam, doíam, e eu pensava que quando vc se apresentasse ao mundo, ninguém ia querer te ler. Na minha cabeça, vc poderia me machucar e machucar muita gente. Eram memórias e histórias paradas por tanto tempo, que eu tive muito medo de me enxergar nelas e de enxerga-las “fora” de mim, assim, pra todo mundo ver.
Lembra aquela vez que a gente falou sobre a morte da Andreia, minha irmã? Caraca. Me lembro muito bem de quando escrevi essa história, em uma aula de técnica de redação na faculdade. De técnica vc não tinha nada, era só aquele turbilhão que parecia que ia me explodir. Minha pálpebra esquerda tremia e eu pensei que fosse desmaiar. Mas vc segurou a minha mão, como quem diz “vc é forte, continua, que eu preciso nascer”. E foi lindo.
O nosso maior interlocutor era um professor querido da faculdade. Pra ele eu não tinha vergonha de te mostrar. Vc podia ter a cara e a forma mais esquisitas, mas ele estava lá de coração e braços abertos pra te ouvir, nos ouvir e nos receber.
De 2013 para cá foram 19 cadernos e bloquinhos que guardo perto dos meus livros, somados às incontáveis anotações no bloco de notas no celular. Quem sabe um dia todos eles não se juntam e decidem virar um livro, hein? Seria massa.
Acontece que agora eu me formei na faculdade. Não tem mais aquele professor pra dar a nota 10 que me assegurava que vc estava bom pra ir pro mundo. Não temos mais aquelas professoras que questionavam, encorajavam, reforçavam que nós éramos ótimos.
Essa coisa de não ter mais professores por perto é difícil, viu. Agora somos só nós dois.
E nesse processo de estarmos sozinhos no mundo, vc deve ter percebido como eu sou dura com vc. Tem dias que nem deixo a ideia amadurecer e já vou logo te abortando. Em outros, eu fico te comparando ao que vc já foi, à linguagem que eu usava pra te criar.
Aquela linguagem parece não te servir mais, é como uma roupa que ficou apertada durante o nosso crescimento. Sei que às vezes eu fico brava quando percebo que a ideia que eu tinha de mim não me cabe mais. Sou resistente pra caramba.
Quando vc decide se mostrar com a sua cara nova, te chamo de contraditório, de simples demais, de bobo, de imaturo, de infantil. Eu não te deixo ser essa criança que, no fundo, eu sei que vc quer ser.
Na real, vc sempre foi criança. Só que nos últimos anos essa criança trouxe muita dor, intensidade e complexidade. E agora vc tem vontade de se manifestar de outras formas, mais leves talvez, e eu insisto em te dizer que o mundo não vai te aceitar assim.
Insisto em dizer que vc tem que voltar a ser como antes, falar com aquela voz adulta séria e pesada. Te digo que vc não pode mostrar pro mundo as minhas alegrias, desejos, tristezas e angústias do jeito que vc quiser. Fico querendo controlar a sua forma de nascer.
Sabe, isso é muito violento… Não posso fazer isso com vc, que sempre está pronto pra me ajudar. Por que eu não permito que vc se manifeste assim, do jeito que vc é hoje, como bem entender? Por que não te deixo ser contraditório, esquisito e até bobo?
Talvez aqui seja importante te dizer que o fato de eu bloquear todas essas suas tentativas de se expressar é muitas vezes reforçado pelo mundo chato em que a gente vive. É um mundo cheio de gente legal, sim, mas também tem muita gente mala que fica julgando, interpretando e maldizendo os textos dos outros. E não falo aqui só dos textos escritos, não. Julgam as nossas falas e até o que não dizemos! Fazem isso sem perguntar o que queríamos dizer. Onde já se viu, né?
E aí hoje eu percebi que eu estava fazendo com vc a mesma coisa que essas pessoas chatas fazem. Não estava te deixando ser feliz! Não estava te deixando dançar pelo mundo. Estava logo te julgando e te expulsando da minha vida. E aí ficamos um tempão separados.
Por isso venho te pedir sinceras desculpas. Desculpas por duvidar de vc, desconfiar das suas mudanças, exigir que vc seja quem não é mais, quem vc não mais precisa ser.
Tudo bem se vc precisar de um tempo pra se recompor de tantos maus tratos. Mas quero te dizer que estou aqui quando vc quiser voltar. Ainda não consigo ser uma adulta tão generosa quanto aqueles professores que tanto te ajudaram a dar os primeiros passos. Mas prometo que vou me esforçar pra ser uma pessoa melhor pra vc e pra mim. Quem sabe a gente não volta a conversar?

Um abraço bem quentinho e com muitas saudades,

Pri

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

A pinta na barriga

Não me lembro se foi quando nasci, ou alguns anos depois, que ganhei uma pinta no lado direito da barriga. Ela era o meu charminho. A minha pinta na barriga.

Lembro-me de como ela aparecia quando eu usava biquíni em Guaecá. A pinta combinava com a praia. Ela aparecia quando eu mostrava o meu corpo às outras pessoas, enquanto brincava, corria ou surfava.

Em algum momento  entre uns 10 e 12 anos, eu passei a sentir raiva daquela pinta. "Ela é muito grande!", "todo mundo deve achar que ela é feia!", "ninguém tem uma pinta assim!". Todos os dias eu pensava, e insistia aos meus pais, que queria arrancá-la do meu corpo. Minha marca, minha memória da praia, se tornara minha maior ameaça.

Insistente que era, fui até o fim na ideia de arrancar aquela pinta. Fui ao cirurgião plástico amigo dos meus pais, que fez uma micro-cirurgia para tirar o incômodo de mim.

Na escola, mostrei a todos os meus amigos o curativo que encobria os pontos dados na minha barriga. Me orgulhava de mostrar a eles que havia retirado do meu corpo aquilo que me diferenciava deles. Agora eu poderia ser igual. Era isso que eu queria.

A cicatriz na minha barriga me olha, triste, diariamente.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Volta para São Paulo


Praça do Pôr do Sol/13 de janeiro de 2016

Depois de quase 15 dias na praia, retorno a São Paulo.
No carro, minha respiração acelera. Meu ar parece querer sair de mim. Desequilibra-se em outros. Vai se do dissociando do que conquistei estando junto a mim.
Como pode o mar da praia unir os meus pedaços e o mar da cidade jogá-los para o ar como se não fossem meus?
São Paulo cria necessidades e carências em mim. "Venha", "faça", "fale", "responda", "exista gritantemente", "não fique parada", "pense, pense, pense", "planeje-se".
Existir em silêncio parece uma impossibilidade paulistana. Uma impossibilidade minha. A ausência de sons e fazeres ameaça o ser na cidade.
Aqui, o silêncio do outro me atormenta. Enxergar o outro e enxergar-me com outros é mais difícil. Surgem, da sombra, fantasias de desafeto, abandono, incompletude, angústia.
Na dor, caminho. Caminho em busca dos poucos verdes que há por aqui. Caminho em busca do mar. Da união. Da unidade que permite a vida.
A criança que vive em mim - e em todos nós - precisa da natureza para brincar livremente e dançar com suas memórias. Só assim é possível ser.