quarta-feira, 11 de abril de 2012

Palavras no asfalto


“Eu não sei se esse é o meu nome, mas me chamam de Raimundo, Raimundo Arruda”. Há dezenove anos, Raimundo vive embaixo de uma mangueira, envolto por sacos de lixo e com uma prancheta em mãos, na movimentada Avenida Pedroso de Moraes, em Pinheiros. Ele não quer saber quantos anos tem, nem em que ano ou em qual dia da semana estamos; sabe apenas que nasceu no dia primeiro de agosto de 1938. Todos os que passam pelo trânsito da avenida, veem, através das janelas distantes de seus veículos, Raimundo escrevendo e escrevendo. Poucos o enxergam.
            Ele conta que não é, como afirmam, poeta ou vidente; escreve apenas para passar o tempo e porque não pode mais ler livros devido a problemas na visão. Segundo ele, os seus textos falam de tudo: da vida, da pobreza, da riqueza, do amor, da felicidade, da invisibilidade. Ao acabar de escrever algumas palavras em uma pequena folha de papel, Raimundo o coloca dentro do que ele chama de “Diário de uma violação aos direitos humanos”. São cerca de quinhentas páginas com escritos, um retrato de sua vida, envoltas por um papelão e um saco preto. 


            Começamos conversando sobre a felicidade e o seu significado. “Você não pode estar feliz sempre, depende muito do seu estilo de vida, um dia você está feliz, no outro, triste”, disse ele. Passamos pelos caminhos da educação, religião, literatura, artes plásticas e jornalismo, que Raimundo percorreu ao ler muitos livros ao longo de sua vida. Ele tem muito a ensinar. Mesmo não querendo se localizar temporalmente, recorda-se de datas históricas, como quando ocorreu a reforma protestante, o surgimento da imprensa no Brasil e a democracia grega. Depois de muito tempo de conversa, li um poema do Vinícius, que originou uma longa e rica argumentação sua sobre a crítica literária. Raimundo diz que os homens deveriam interpretar os poemas e prosas como os autores o intencionaram e que os textos devem emocionar sempre.
            Quando perguntei sobre o porquê de viver há tanto tempo naquele local, ele me respondeu apenas que não tinha mais capacidade de andar e que um de seus sonhos é sair de São Paulo logo e talvez voltar para Goiás, onde nasceu, pois a capital paulista é a verdadeira responsável pelo seu modo de vida. Além da cidade, o goiano também mostrou descontentamento com a ciência e suas pesquisas no texto que me escreveu hoje, embora a data registrada por ele seja 12/04/1999 : “Vitória da ciência, desgraça do indivíduo. A ciência ... cérebro... palavra por palavra... só deixa usar o que a ciência permite. Assinado: o condicionado – casa suína, modelo em ´desigiene´ ”. Raimundo se vê como uma cobaia de laboratório, testado por quem o cerca.
            Mesmo não se considerando um poeta, as suas palavras são de denúncia e retratam o não conformismo com a sua situação, ao contrário do que se diz entre os moradores de Pinheiros: “ele fica aí por birra”. O goiano contraria essa opinião e afirma que não levam a sua situação a sério e o tratam como um ser invisível e insignificante, mas que é, na verdade, o escritor de sua história no asfalto da cidade de São Paulo.