terça-feira, 26 de novembro de 2013

"Sim, senhora"

Em janeiro deste ano, fui a uma das unidades da Fundação Casa (antiga Febem), para a gravação de uma matéria jornalística. Eu e minha equipe tínhamos como objetivo conversar com a presidente da Fundação e com os adolescentes que vivem lá.
A primeira pessoa com quem conversamos foi o Thiago Silva, assessor de imprensa do local, que nos dizia repetidamente o quanto os meninos eram transformados durante os meses - ou anos - da medida socioeducativa, anteriormente chamada de penalidade. Thiago nos mostrou alguns textos, escritos por jovens de 15 a 18 anos, nos quais eles deveriam expressar o seu amor pela cidade de São Paulo. 

Aqueles poemas e contos nas paredes da Fundação Casa continham palavras "frias e chatas", como me revelou em voz baixa Jefferson Arruda*, em seus 17 anos - dois deles vividos atrás das grades -, quando a câmera se afastou de nós por alguns instantes. 
Lente e microfone voltaram, e com eles toda a formalidade da norma culta. Enquanto eu entrevistava Jefferson e seus companheiros de muros de concreto, o assessor de imprensa não hesitava em nos interromper para corrigir a fala dos meninos. "Fala direito, moleque!", "Chama ela de senhora!", impunha ele, com tom de voz semelhante ao que ouvi em visita a um quartel general no ano passado. 
Fiquei incomodada com a humilhação que Jefferson engolia seco e calado. Seus olhos não se encheram de lágrimas, como os meus, mas se direcionaram para cima, o gesto inicial de quem vai contar uma história distante da sua. Nesse momento a matéria estava perdida. O menino fora transformado em outro, que dizia ser muito bem tratado na Fundação, e tudo isso era dito segundo os dogmas da norma culta da língua portuguesa. 
No momento em que o cinegrafista parou de gravar, não consegui ir embora com ele. Passei mais de uma hora naquele mundo cinza, conversando com Jefferson. Ele me contava, sempre olhando para trás e para os lados, que não havia aprendido a "escrever direito" na escola, mas que gostaria de me mostrar algo que estava produzindo com um amigo nos últimos dias. "A gente quer liberdade" e "Queremo falá" eram algumas das expressões que saltavam do guardanapo, que hoje está em minha escrivaninha.
A matéria gravada na Fundação Casa foi ao ar na TV Gazeta. Assisti ao programa em minha casa, na zona oeste, na companhia de familiares e a quilômetros de distância de Jefferson. Alguns dias depois da exibição do programa, um conhecido comentou comigo: "Como esses meninos falam bem, Pri, nem parece que são criminosos e vieram da periferia". 

Pensei em iniciar uma longa fala sobre todas as angústias que me traziam aquele comentário, mas desisti e dirigi meus pensamentos às palavras de Jefferson, que têm muito a dizer sobre nós e sobre as tentativas de homogeneização dos outros.

*Nome fictício. A identidade dos meninos que estão na Fundação não pode ser revelada sem autorização prévia. 

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Encontros entre o preto e o branco

Minhas viagens à praia de Guaecá, no litoral norte, costumam ser uma busca pelo silêncio que vem do mar. Em uma das últimas vezes em que estive lá, a calmaria das marolas foi substituída pelo florescer de ondas lindas, porém dolorosas, que se formaram em meus pensamentos depois que conheci Mariela dos Santos.
            Em um sábado cinzento de agosto, acordei em Guaecá e decidi que iria encontrar alguns amigos em uma praia distante cerca de duas horas de onde eu estava. Logo após o almoço, sentei-me no ponto de ônibus e, ao meus lado, ouvi vozes solitárias. Olhei para os cabelos brancos e olhos azuis que se moviam ao lado dos fones de ouvido que me separavam da realidade.
            As muitas rugas de Mariela revelavam sua idade avançada. “Tenho 81 anos, já estou velha demais e não tenho mais o que viver”, contou-me ela, olhando fundo em meus olhos. Sempre tive medo de olhares profundos, mas, naquele dia, decidi mergulhar na imensidão turquesa que se construía à minha frente.
            Mariela pediu para se sentar no banco vazio ao meu lado, negando a minha ajuda para acomodar sua bolsa pesada embaixo do assento. “Esta bolsa aqui tem sido a minha maior companheira depois que meu marido e meu filho faleceram”. Enquanto me contava sobre como era morar em Bertioga – onde vivia desde 2002 -, ela mexia repetidamente na aliança de casamento que repousava em seu dedo há mais de sessenta anos.
            Antes de descer do ônibus e fugir da tontura que aquela conversa havia me causado, Mariela pediu meu número de telefone, para que me ligasse às segundas-feiras. Segundo ela, estes eram os dias em que se sentia mais sozinha. Tive vontade de dizer que, mesmo vivendo em meio à multidão paulistana, eu sentia a mesma angústia que ela. Mas as palavras ficaram, mais uma vez, no caminho entre meu coração e minha garganta.
            Despedi-me daquela senhora como quem se encontra com a vida e a morte no mesmo abraço. Permaneci sentada em frente à porta da casa de meus amigos, em silêncio. Aquele silêncio não era a ausência de palavras e, sim, a criação gritante de minha busca pelo viver além das cascas protetoras.
            Mariela nunca me ligou, mas mesmo que continuemos sozinhas nos ônibus por aí, ela permanece me ajudando a mergulhar nos mistérios indefiníveis que estão além da superfície calma do mar, no espaço entre a beleza e a dor de viver, e que só podem ser tecidos nos encontros.

Entre-tecidos

Schopenhauer implode
A vontade
Clarice deglute
A barata
Eu me perco
Nonada

sábado, 2 de novembro de 2013

"Sem nome
Sem corpo
Lá longe
Te vejo 
Infinito 
É o voo
Que sai 
Do meu peito"

(São Paulo, 01.11.2013)